Perfeitamente Imperfeito: Reflexões sobre o perfeccionismo

Por Walther Hermann Kerth

Sinopse

O perfeccionismo é bom ou ruim? Se por um lado ele nos desafia e impulsiona em busca da excelência, por outro ele pode nos bloquear ou nos manter tão tensos que fiquemos cegos para a realidade ou exaustos e sem motivação para agir. Sendo um hábito aprendido, em geral, no seio de nossa cultura familiar, esportiva ou profissional, poderá ser melhor utilizado se soubermos compreender parte de sua natureza inconsciente. Essas são algumas das questões comentadas nesse artigo que tem por finalidade criar uma nova ordem das tensões inconscientes relacionadas com o assunto.

Contexto

As reflexões a seguir constituem parte da palestra de “Hipnose no III Milênio” ou “Inteligência Intrapessoal” e integram um conjunto de idéias cuja finalidade é afrouxar algumas tensões inconscientes (mais tipicamente a falta de aceitação e compreensão profundas do equilíbrio e da conjugação de forças interiores) que dificultam a conexão pessoal consigo mesmo e inibe a manifestação de algumas qualidades que dão origem à intuição e à percepção de si mesmo.

Artigo

Alguns acontecimentos que comoveram o mundo, tais como os atentados terroristas nos Estados Unidos, guerra no Afeganistão, antigos conflitos entre povos irmãos no Oriente Médio novamente despertaram a curiosidade do ocidental em analisar e conhecer as realidades de alguns povos excluídos dos hábitos e da riqueza do ocidente.

Voltando a atenção para algumas das regiões esquecidas do planeta pelos ocidentais, somente evidentes nesses momentos de tragédias ou conflitos, ouvi com bastante frequência comentários sobre a pobreza, ignorância, baixo grau de civilidade, etc, muito do que poderia me fazer concluir que o ocidente tinha o “mal” e a ignorância para enfrentar.

Entretanto, várias entrevistas com representantes dessas culturas e desses ‘mundos’ revelaram uma outra realidade, uma compreensão estruturada, significados e comportamentos coerentes e hábitos culturais construídos ao longo de várias gerações. Evidentemente, muitos dos representantes desses povos não compartilham das explicações e atributos dados a eles pela mídia ocidental, da mesma forma que muitos nos julgam inadequados a partir de seus próprios conhecimentos e hábitos culturais.

Quando tratamos da experiência subjetiva, em especial das razões e formas variadas do comportamento humano, não consegui ainda encontrar uma única verdade que fosse capaz de explicar clara e logicamente a natureza dos motivos dos impulsos e hábitos humanos.

Pensando assim, descobri como pesquisador do comportamento, que existem algumas reflexões muito úteis para promover maior flexibilidade e uma nova ordem interior que seja mais ‘doce’ e respeitosa, principalmente no que diz respeito àquelas pessoas muito exigentes e duras para consigo mesmas (o que parece já fazer parte de nossa cultura e da educação que buscamos e recebemos para a conquista do sucesso nesse ‘grande jogo’ que é a vida em sociedade). Creio que alguns exemplos possam esclarecer melhor a verdadeira importância do perfeccionismo que herdamos, creio eu, especialmente da cultura européia.

Certa vez, um amigo me procurou pedindo ajuda para emagrecer… No passado já pesara 170Kg. Quando o conheci em um de meus seminários pesava 105Kg e, curiosamente, começou a emagrecer espontaneamente após o curso como uma conquista pessoal indireta daquilo que tinha aprendido inconscientemente durante o curso. Entretanto, um ou dois anos depois, seu peso saíra do controle mais uma vez e não havia mais regime que resolvesse (tinha 110Kg e sua meta era 90Kg por sua estatura ser bastante avantajada).

Assim, antes de um trabalho específico com hipnose para buscar uma solução, tive uma longa conversa com ele… Procurava alguma outra questão que pudesse acompanhar sua insatisfação com o próprio peso: qual não foi a minha feliz surpresa em descobrir que tudo estava perfeito em sua vida! Pessoal, profissional, familiar, afetiva, patrimonial e financeiramente!!!!! Pensando um pouco sobre o assunto, terminei por lhe propor o seguinte: “Todos os setores de sua vida estão perfeitos… Se eu fosse você, não me preocuparia com os fracassos na busca de seu peso ideal, mesmo se nosso trabalho com hipnose falhar!”.

“Mas por quê?” Disse ele. “… É a única coisa que está me incomodando atualmente!”. Eu disse: “justamente por isso!”. Percebi que ele tinha ficado um tanto confuso com minha resposta, então passei a contar-lhe algumas histórias para esclarecer melhor minhas idéias.

Certa vez ouvi, de um de meus mestres, uma frase contundente que mais se parecia com um jogo de palavras: “Se você quiser ser mais organizado, deve praticar mais a desorganização… Se buscar ser mais concentrado, pratique mais desconcentração (ou descontração, mais momentos de mente livre). Se desejar melhor memória, deverá esquecer-se mais das coisas… Se precisar de mais controle, treine mais o descontrole!”.

Embora isso possa parecer apenas uma brincadeira com as palavras, quando ouvi isso perdi a respiração e meu coração disparou! Fiquei completamente aturdido! E enquanto tentava me recompor, entrei espontaneamente em um conjunto de memórias que davam um certo sentido àquelas afirmações.

Na prática do Tai Chi Chuan, tornei-me instrutor muito rapidamente devido à minha dedicação e possuir uma coordenação motora já um tanto treinada (fui atleta). Por isso, muito cedo comecei a participar dos treinamentos mais adiantados dos instrutores, embora fosse o mais jovem e inexperiente entre eles. Numa determinada ocasião, o objetivo dos treinamentos era a conquista de velocidade nos movimentos (os mesmos que treinávamos tão lentamente quando iniciantes).

Invariavelmente meu tempo não era inferior a 90 segundos (nos treinos de velocidade) para o mesmo conjunto de movimentos que me tomavam 20 minutos na prática lenta. Treinei obstinadamente sem sucesso durante alguns meses para diminuir o tempo e fazer mais rapidamente. Meus colegas, instrutores mais antigos possuíam marcas muito melhores que as minhas.

Frustrado, pedi ao meu professor que me ensinasse o que deveria fazer para melhorar… Ele serenamente parafraseou meu desejo perguntando se eu realmente queria me tornar mais rápido: eu disse que sim. Ele insistiu e mais uma vez confirmei minha intenção. Então ele disse que eu deveria praticar mais e mais devagar dali em diante. Contestei dizendo que buscava o contrário, e ele insistiu convictamente em sua proposta, aliás determinando que nas próximas práticas seria exatamente isso que eu faria!

Após algumas tentativas disciplinadas descobri que não era tão fácil… Percebi que não conseguia ser tão mais lento do que já era, dos 20 minutos consegui aumentar apenas para 25 minutos. Além disso, perdia o equilíbrio, a fluidez e principalmente a respiração enquanto meu coração disparava! Esse novo desafio acabou me absorvendo nos meses seguintes até esquecer-me dos treinamentos com velocidade. Certo dia, após meses de prática mais e mais lenta, sem mais nem menos, foi determinado que fizéssemos uma prática de velocidade… Espantosamente constatei que, mesmo sem treinar durante meses, minha velocidade aumentara e o meu tempo foi reduzido para 70 segundos!

Talvez por isso, aquela frase que meu mestre dissera, embora contraditória tivera despertado tamanha reação orgânica em mim. Depois de alguns anos praticando hipnose, aprendi a conhecer algumas reações inconscientes que se manifestam através de sensações ou reações corporais. E esse é um dos sinais que tenho combinado com minha própria mente interior: quando não sou capaz de enxergar ou perceber algo significativo, meu coração disparara espontaneamente para sinalizar/apontar alguma descoberta importante ou conclusão para a qual não esteja suficientemente atento ou receptivo. É um sinalizador inconsciente que me ajuda a perceber melhor a realidade.

Creio que vivemos numa época cujas maiores preciosidades e oportunidades estão debaixo do nariz de todos, embora apenas alguns as encontrem (pense na oportunidade que Bill Gates aproveitou, qualquer um poderia ter encontrado isso em vez dele, a riqueza estava à disposição de quem a visse primeiro!).

Eu fui atleta e competi bastante, minha maior necessidade durante muito tempo foi o controle emocional para poder jogar melhor. Foi uma das razões que me conduziu para o conhecimento da hipnose. Conclui então que estivera procurando tal competência num local no qual eu não a acharia, apenas tentando me controlar cada vez mais!

Possivelmente você já saiba que os tapetes orientais genuínos possuem alguma imperfeição. Assim como os hindus que, mesmo tendo muitas posses, constroem casas nas quais deixam sempre algo inacabado ou defeituoso, como por exemplo, um vidro quebrado no canto da dispensa, ou uma maçaneta emperrada em alguma porta pouco utilizada… Por irracional que isso possa parecer, é bastante coerente com suas crenças de que a perfeição pertence somente a Deus, não sendo possível ao homem. Quando o homem insiste em ser perfeito corre o risco de tal poder fugir-lhe do controle! Assim sendo, deliberadamente colocam defeitos em suas obras em locais que pouco atrapalhem ou sejam visíveis ‘subentendendo’ que estarão preservando-se de imperfeições evidentes ou incômodas!

Essa sabedoria pode ser bastante útil quando buscamos compreender a natureza de alguns comportamentos indesejados, compulsões ou mesmo determinados tipos de problemas recorrentes em nossas vidas – especialmente aqueles que fogem de nosso controle! Não que devamos despreza-los ou ignora- los, mas sim que, embora possamos buscar insistentemente por soluções, devemos aceita-los em nossas vidas!

Era isso o que eu tencionava dizer àquele meu amigo que queria emagrecer e que já pensava numa lipo-aspiração (evidentemente desaconselhei). Era melhor que seus problemas estivessem nesse setor de sua vida, a obesidade, do que estivessem em algum outro setor como família, profissão, carreira, etc, e graças a essa sua insatisfação continuaria buscando soluções das mais diversas (cumprindo o destino inconsciente de se manter em desenvolvimento permanente). Era a única coisa que o desafiava, o incomodava e o impulsionava naqueles dias, como poderia livrar-se dela? Evidentemente esse era o meu ponto de vista que poderia justificar tantos fracassos nessa conquista.

Algumas dessas tensões são verdadeiramente ‘molas propulsoras’ na vida de algumas pessoas, principalmente quando observamos o histórico numa perspectiva maior de tempo, é muito comum concluirmos que muitos dos maiores dramas foram os maiores mestres na conquista da individualidade ou de algum dom especial!

Entre outros trabalhos e pesquisas, desenvolvi uma metodologia para ensinar idiomas estrangeiros para pessoas que têm dificuldades ou bloqueios de aprendizado ou expressão. Freqüentemente, um dos maiores entraves é atribuído ao perfeccionismo que, quando exagerado, não permite ao estudante se submeter ao risco de errar, ou seja, a um processo natural no aprendizado que é a tentativa e erro (processo empírico).

Certa vez conheci um estudante de inglês que já tentava falar o idioma há muitos anos, era até dono de uma escola de línguas! Ele comentou que era perfeccionista e que graças a essa atitude e hábito, tinha conquistado muitos sucessos em sua vida: exceto falar inglês! Sugeri a ele então que deveria aplicar tal atitude da seguinte forma: “A perfeição no aprendizado de idiomas é conhece-lo tão bem que saibamos pensar como um nativo pensa e elabora naquela língua”. Ele concordou comigo. Comentei então que, para chegarmos nesse grau de perfeição, devemos inclusive conhecer, compreender e sentir tal cultura estrangeira com tal profundidade que sejamos capazes de não julga-los ou avalia-los a partir de nossos paradigmas culturais… Mais uma vez ele concordou comigo.

Isso representaria flexibilizar nossos comportamentos, hábitos e atitudes a tal ponto que nos fosse possível deixar de ser quem somos para construirmos uma nova identidade lingüística (pois é exatamente isso o que acontece com os bons falantes de idiomas estrangeiros, eles possuem identidades diversas para falar línguas diferentes: preste bem atenção nessas pessoas e perceberá que suas expressões faciais, gestos, voz e ‘jeitão’ são como se fossem pessoas diferentes ao se expressarem em línguas diferentes!).

Ainda assim ele concordava comigo lembrando de pessoas conhecidas que apresentavam tais alterações de identidade. Contei-lhe então que para ser verdadeiramente perfeito no aprendizado de outro idioma teria que abandonar o próprio perfeccionismo que não pertence a algumas culturas de língua inglesa! Somente assim estaria disponível para tentar, errar e acertar, exatamente como uma criança nativa aprende o idioma materno.

Conclusão

Quem sabe, graças à nossa cultura de aparências, o perfeccionismo seja um grande aliado das pessoas em buscar, encontrar e conquistar o sucesso desejado no ambiente social. Entretanto, do ponto de vista do equilíbrio das forças inconscientes, que inclusive controlam muitos de nossos comportamentos, ele pode ser um fator gerador de tensões bastante significativo, nem sempre saudáveis.

Quando buscamos a nós mesmos, pelo autoconhecimento ou através de qualquer método, imagino que nos encontraremos aprisionados em suas teias em algum momento; tal qual disse um grande mestre zen: “No caminho espiritual, sem esforço não se chega a lugar nenhum… Porém, com esforço, também não!”. Assim sendo, ao lidarmos com esse aliado devidamente, poderemos aproveita- lo sem comprometer nossa autoestima e autorrespeito, atitudes essenciais no caminho do amadurecimento emocional.

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