O grande amor

Data de Publicação: 28 de Julho de 2013

Tradução livre da entrevista com Bradford Keeney realizada por Deborah Caldwell

O grande tabu em nossa cultura não tem nada a ver com sexo, drogas ou teatro controverso, mas sim com a experiência de êxtase (extática).

No livro “Bushman Shaman”, Bradford Keeney detalha sua iniciação na tradição xamânica dos bosquímanos do Kalahari, considerada por alguns estudiosos como a cultura viva mais antiga do planeta. Keeney procurou pelos bosquímanos quando esteve visitando a África do Sul como professor visitante de psicoterapia. Ele soube das suas “danças em transe”, nas quais seus corpos se agitam incontrolavelmente como parte de cerimônias de cura. Keeney foi levado a estas tradições na esperança de explicar suas próprias experiências extáticas de vibração, que ele experimentou pela primeira vez aos 19 anos e tentou esconder ao longo de sua vida de jovem adulto.

A editora sênior da Beliefnet, Deborah Caldwell, conversou recentemente com Keeney sobre como chegar ao que ele chama “o grande amor”.

O que é um xamã?

Existem tantas idéias preconcebidas em nossa cultura sobre o xamanismo que eu tento não usar essa palavra por temer que esteja conectada a estas concepções equivocadas. Isso inclui o xamã, que busca a planta mágica sagrada (planta de poder), que conduz a estados de consciência alterados e realidades alternativas. O segundo uso do xamanismo em nossa cultura é em treinamentos de fim de semana, como aqueles que dizem “Deixe toda a mentira cair no chão e acompanhe-nos numa fantasia imaginária guiada, e nós imaginaremos que nós estamos visualizando uma criatura que nos ajude encontrar as respostas.” Este certamente não foi o meu caminho, nem foi uma definição que tenha qualquer relação com o que fazem os xamãs com quem trabalhei. E nenhuma dessas idéias representa o significado mais profundo e histórico de xamã.

Todas as pessoas que eu conheci em diversas culturas ao redor do mundo, que se declararam xamãs, tiveram um renascimento, onde experimentaram a luminosidade mística: o tipo do amor que você sente em uma igreja rural de negros, onde acabaram de perder o controle e jogaram longe o sermão e não podem parar de cantar e dançar. Eu conheço pessoas destas igrejas de negros, pessoas que não conseguem chegar à Igreja sem serem apanhadas e arrebatadas para lá, não sabendo como elas passarão por isso, semana após semana. Elas vivem de encontros de orações desde quarta-feira à noite até domingo de manhã, e logo em seguida trabalhos na noite de domingo. É como se estivem agarradas a uma corda e balançassem até o dia seguinte, mas quando elas estão lá, realmente envolvidas, o grande amor vem.

Esse termo que você usa, “o grande amor”, é maravilhoso.

Você pode explicá-lo?

É uma experiência que é conhecida por místicos de todos os apelos culturais, e quando você está nela, seu corpo começa a se agitar e tremer. Que conduz finalmente ao desejo de se expressar, e uma vez lá, não se consegue traduzir em palavras o grande sentimento que se tem. Assim você se move para dentro do que eu chamo de “poesia sonora,” e a poesia sonora se transforma no cantar. Xamãs, tanto faz se eles são da Amazônia, da medicina popular de Lakota ou se são os curandeiros bosquímanos, todos reconhecem essa ?captura? das canções. Suas convicções são que o Grande Deus, que expressa o Grande Amor, somente pode compartilhar o amor através do ritmo, da beleza da canção.

O bosquímano do Kalahari gosta de falar sobre isso como se você fosse atingido por um tipo de flecha espiritual. Nós sabemos que o amor ardente, o calor de uma flecha, pode nos transformar em tolos e virar-nos de ?ponta-cabeça? com o desejo do contato físico com outra pessoa. Existe também o amor familiar, que é mais significativo ainda, tal como o amor de uma mãe ou pai pela sua criança. Mas com o Grande Amor, a flecha simplesmente se torna mais quente. Porque não é o desejo de utilizar o outro para a sua satisfação pessoal; pelo contrário, esse amor se move no sentido de importar-se tanto com o outro, ao ponto de você estar disposto a se sacrificar pelo outro. Finalmente, quando a flecha se tornar ainda mais quente, quando estiver incandescente, você vê a luz branca. Nesse ponto, o amor continua fluindo, e agora sente-se toda a vida conectada. Existe a percepção que nós todos estamos sendo sustentados (segurados) por algum braço maior ou por alguma mão grandiosa.

E lá as palavras simplesmente desaparecem. Eu sei que isso soa exagerado e tolo…

Não, de modo algum.

Mas isto é uma conversa mística. E quando você é atingido pelo Grande Amor, isso enche você com tanto êxtase que você simplesmente tem que saltar. Eu quero dizer, a igreja dos negros tem isso. Ainda existe algo como uma alergia à religião daqueles que reivindicam serem os interessados em assuntos espirituais. Huston Smith falava sobre sua irritação com seus contemporâneos, que reivindicavam estar na busca espiritual e faziam distinção entre a espiritualidade e a religião; isso é absurdo porque as grandes religiões são os contextos das histórias de pessoas que perceberam completamente como o impacto do espírito muda seus corações.

Você poderia contar a história de como você percebeu que você tem este dom?

Eu cresci em uma igreja rural. Meu pai e meu avô eram pastores rurais, e eu fui bastante afortunado, porque suas vidas foram exemplos de como se importar com outro, e isso significava nunca julgar, e sempre ajudar as pessoas a moverem-se no sentido da consciência do perdão.

Na metade do segundo ano da Universidade eu já era independente. Eu penso que eu tinha acabado de comprar um disco em uma loja, e eu tive uma das mais surpreendentes e importantes experiências de minha vida. Começou com uma sensação de calma invadindo todo o meu ser, e então eu me senti sem peso. Eu senti como se eu estivesse sendo movido; era uma paz profunda e confortável que não havia nenhuma necessidade refletir sobre o que acontecia ? isso era a coisa estranha sobre isso. Você pensaria que se você fosse tomado por tal experiência, sua mente começaria a ficar ocupada com diálogos internos: “o que está acontecendo? O que eu faço? O que é isto?”. Mas eu não pensava em absolutamente nada ? eu me entreguei imediatamente ao que quer que fosse, e eu me encontrei caminhando para a Capela da Universidade, entrei e fui até o banco da frente e me sentei.

Lembre-se, eu era filho de um pastor do interior, eu nunca ouvira nada sobre Kundalini Yoga ou quaisquer coisas dessas, mas tudo que eu sabia era que minha barriga, na base da minha espinha, era como um amor transformado (em movimento). Eu simplesmente estava em ?chamas?, e isso começou a subir lentamente pela minha espinha. E não parou; percorreu todo o caminho até sair fora pelo topo da minha cabeça; e eu pude contemplar bem na minha frente, em uma nuvem branca amorfa, eu vi diretamente a imagem de Jesus. Eu estava chorando, e meu corpo estava chacoalhando (vibrando), e meu coração estava explodindo ? eu tive uma experiência clássica de êxtase (sequestro).

Posteriormente, eu apenas li alguns livros e tentei deixar isso para lá. Mas naturalmente, você não consegue, isso simplesmente continua aparecendo ? você sabe, você pode correr mas você não pode esconder. E eu me mantive ocupado de todas as formas até eu ser um jovem professor interino coordenando um programa de doutoramento em terapia de família, então eu senti que era hora de abrir outra vez essa porta.

Você teve alguma noção do que causou isto?

Hoje em dia, eu faço essa mesma pergunta que você me propôs. Este certamente não foi o caso de eu ter ouvido, lido ou pensado sobre isso: “Huh, eu quero isso.” Certamente, eu imaginei, eu já tive as experiências religiosas de ser um menino que sentiu o chamado de dedicar minha vida a servir ao próximo ? e eu senti aquele pequeno puxão do coração, a alegria de ser batizado e tudo mais. Eu pensei que era o que era; eu não sabia que havia qualquer coisa a mais.

Era o mesmo sentimento de um despertar religioso pentecostal?

Antes de tudo, parece existir uma vasta gama de formas da expressão extática ao redor do mundo. E a nossa cultura tende a demonstrar um constrangimento particular ? mas se você for a uma Congregação Pentecostal e lá houver um incentivo ao louvor que envolva entrega (perder-se de si ou perda de controle) e perder suas inibições, então você terá um clássico fenômeno xamânico. Você se expressa como falando outras línguas, e você começa a saltar, você começa a gritar, e um pastor mais velho toca em sua testa, e você desfalece. Isso está prontamente disponível a qualquer um que entre e permita acontecer.

Nós pensamos que isto é tudo no caminho espiritual, mas é realmente apenas um pequeno flerte com ele. Por outro lado, você ainda pode encontrá-la em algumas poucas igrejas da comunidade negra (EUA), mas é muito difícil encontrar estas igrejas. O que quero dizer é que, em Nova Orleans eu encontrei somente uma igreja consagrada. Você deve sair pelo interior do país (EUA), e elas estão desaparecendo porque os anciãos estão morrendo. Nas gerações mais jovens, o que você encontra é Pentecostalismo, que se transformou em um show. Assim você tem que ir ao Caribe para encontrar a igreja da comunidade negra como costumava ser.

Mas se você superar as coisas que acontecem no despertar religioso, então começamos a sentir as coisas fora do controle, quando sentimos as coisas assim, a primeira vez que isso acontece com você pode ser bastante assustador. Em outras culturas, nesse ponto você atravessa uma crise sobre tornar-se um aluno da ?realização espiritual? e passar pela provação da aprendizagem de conviver com isso. Se você fizer, você aprende a se sentir confortável estando fora de controle. Mas isso é uma provação ? não é um treinamento de xamanismo de fim de semana. Você não teria ninguém pagando US$ 500 ou qualquer outra coisa para ser um xamã, se eles soubessem que teriam que passar por uma provação infernal. É um verdadeiro rito de passagem.

Descreva a provação.

Em nossa cultura, nós nem mesmo sabemos que isto existe. Nós pensamos que a experiência mais completa de êxtase é o que você vê no trabalho pentecostal. Mas se você for a África, eles sabem que quando o espírito te agarra, quando os espíritos ancestrais se manifestam em você ? isto resulta em uma vibração corporal incontrolável, que se acontecesse por aqui (EUA) você seria levado a um pronto-socorro para uma intervenção médica. As pessoas pensam que você está tendo um ataque epilético, ou que você vai ficar psicótico.

Na África, eles acreditam que o espírito entrou no corpo. Agora, entre os Zulus, eles realmente vão viver em uma comunidade de xamãs tradicionais ou curandeiros, e todos os dias, eles despertam você com os tambores e você dança. Eles lhe ensinam como permitir que o espírito se estabilize em seu corpo. Bem, você sabe, isto era assim na igreja pentecostal no passado.

Oh, sim!

[Risadas]. Ok. E isso é o começo. O grande tabu em nossa cultura não tem nada a ver com sexo, drogas, com teatro ou apresentações controversas ? mas sim com esse reino da experiência do êxtase. Nós apenas excluímos isto, fechamos a porta, não existe espaço para isso, sem nenhuma razão, de fato, nós nem mesmo queremos olhar para isto

Quais culturas têm essa prática, além da Africana?

Se você for ao Tibet, você encontra iniciações secretas ? que acontecem em locais fechados e que envolvem tremores extáticos e vibrações do corpo. Quando o Dalai Lama vai encontrar as grandes respostas para as grandes perguntas, ele visita seu oráculo, que se apresenta numa forma xamânica.

E está na cultura americana nativa?

Sim, mas devido a sua precoce interação com os missionários, que viram isto como a adoração ao demônio, tudo isso tornou-se subversivo e foi abolido. Então a cerimônia começou a acontecer mais na obscuridade, assim não seria vista. Ninguém sabe realmente como era antes que a cultura européia viesse para cá; muito provavelmente eram feitas ao ar livre.

Por que o xamanismo não é encontrado na cultura européia?

Porque nós somos obcecados e viciados à idéia de termos controle.

Uma invenção Ocidental é o Manual de Desordens Psiquiátricas. Isto é realmente um catálogo de modos sobre como você pode se sentir descontrolado ? e para cada uma delas há um método para trazê-lo de volta ao controle.

A cultura européia já teve uma tradição xamânica?

Sim, porque de tempos em tempos você ouve sobre vírus de dança que apareceram inesperadamente nas ruas na Europa. De repente, as pessoas começam a dançar de um modo selvagem, incontroláveis.

E aqueles que foram perseguidos na Europa, vieram para a América ? e tornaram-se os Shakers (curandeiros que trabalham com a vibração). Os shakers (pessoas que vibram, chacoalham) e os quakers (pessoas que tremem) eram chamados assim porque eles se agitavam e tremiam. Mas eles pararam de vibrar, e agora nós os conhecemos por fazerem móveis polidos. [Riso] E John Wesley, o fundador da Igreja Metodista, quando ele pregava, seriam necessários quatro ou cinco homens para dominar uma pessoa que fora tomada pelo espírito. E quando eu leio sobre o Grande Movimento de Despertar Religioso do Kentucky, eu noto que quando estes movimentos inromperam, eles começaram a ficar cada vez mais representativos e expressivos. E à medida que isso aconteceu, todo mundo ficou preocupado e eles acabaram com Wesley.

Nós não sabemos o que a fazer com isso, assim dizemos que é bom somente até certo ponto. Mesmo entre os evangélicos, observe como eles debatem o assunto. A metade deles afirma que isto é exorcismo, desobsessão ou culto ao demônio. Há uma tremenda discussão para definir os limites da expressão carismática.

Por que algumas pessoas recebem este presente e outras não?

Eu não sei. Talvez eu fosse somente muito estúpido para perceber que era algo, fechasse a porta e tivesse corrido para as colinas.

Mas eu penso que eu fui afortunado no sentido de saber, sem dúvida, que qualquer coisa que acontecia comigo naquela idade era a maior experiência que qualquer ser humano podia ter, e eu sabia que o resto de minha vida, de alguma forma, seria descobrir o que era. A maior parte dos xamãs com quem eu me encontrei, quando você pede a eles para falar sobre estas experiências, eles ficarão sobrecarregados (estressados, bloqueados) apenas em tocar no assunto, pois eles se lembram como isso os arrebatou.

Como você soube que você tinha que ir para a África?

Eu proferi uma palestra em Minnesota sobre metáforas para o entendimento de relacionamentos. E no final um homem se apresenta e diz: “Sabe, estas coisas sobre as quais você fala, elas são muito familiares para o meu povo. E se você estiver interessado, por que você não vem conosco para ver como as pessoas realmente vivem isto?” Ele era um curandeiro. E aquilo me levou a decisão de aceitar um trabalho acadêmico em St. Paul e lá, eu imediatamente o procurei e isso trouxe tudo de volta, com um impacto visionário incrível. Quando eu entrava em cerimônias, eu via coisas ou direções específicas, muito facilmente. ?

Eventualmente eu estive numa igreja da comunidade negra em Minneapolis onde todos os paroquianos vinham da Louisiana. Quando eu estive lá pela primeira vez, não existia outra pessoa branca lá. Mas depois de vários anos, isto tinha se tornado uma parte tão grande da minha vida, que me convidaram para ser um diácono ? os diáconos são aqueles que manipulam o Espírito. Os pregadores surgem depois que o Espírito foi manifestado.

Mas ao mesmo tempo eu estava buscando os caminhos nativos americanos. Foi durante tudo isso que eu tive um sonho de ir para o Kalahari. Quando eu tive aquela visão, eu fui convidado para ser um professor visitante na Universidade da África do Sul.

O que você experimenta quando você está com os Bosquímanos?

Não há realmente nenhuma diferença entre ir para uma Grande Igreja da comunidade negra no Caribe no sentido que você nunca sabe se vai ser uma grande reunião aquela noite, mas você sabe que existe a possibilidade de vir a ser uma oportunidade daquele Grande Amor descer em todo mundo e então você não pode parar, você não pode parar de cantar. Eles estão tão preenchidos com o Espírito que eles estão lamentando, tanto homens como mulheres, crianças, todo mundo está lá ? ninguém está ausente; a comunidade inteira reúne-se ? e não existe nada como isto. Mas eu poderia dizer o mesmo sobre estar em uma grande igreja da comunidade negra ou sobre estar em uma grande cerimônia em qualquer cultura. Mas infelizmente, em algumas culturas, é tão mais difícil atravessar o véu por existirem tantas restrições.

O xamãs são aqueles que se permitiram experienciar as provações de serem agitados pelo Espírito porque até os Bosquímanos se assustam com as provações que você tem que superar para aprender a ser um xamã, que é como permitir que seu coração fique tão machucado quanto pela perda de pessoas queridas e por todas as calamidades que possam acontecer na vida. Eles se rendem, acalmam com o poder, a presença, o amor, e graça do Grande Deus, e eles permitem que isto movimente os seus corpos. Seu corpo inteiro começa a pulsar como um tambor rítmico, e naquela vibração, você dança como uma britadeira em câmara lenta (com passos muito pesados) em torno do fogo e você começa a sentir seu corpo desaparecer. E quando seu corpo desaparecer, você o sente como uma nuvem de energia pulsando em vibração ? que flutua direto para o céu e, naquele estado, você fica visionário (vidente).

Quão distantes nós estamos de, algum dia, sermos capazes de acessar um senso cultural tão amplo?

Eu tenho pensado sobre isto o tempo todo porque você pode imaginar que dádiva (benção) e que maldição é estar no meio de tudo isso. Eu sei como me comportar no Kalahari, mas eu não estou realmente certo como me comportar nesta cultura. Houve tempos quando eu tentei ver se eu poderia infiltrar isto na cultura através do teatro experimental de improvisação e negar qualquer relação com a espiritualidade, com a religião, ou jornada espiritual. Mas isso acabou virando um carnaval do espírito. Mas eu continuo fazendo a mesma pergunta ? será isso o meu chamado: tomar parte na introdução ou difusão disso tudo (no mundo ocidental)?

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