Reflexões de 2007

© Walther Hermann Kerth

“O que a lagarta chama de morte, o Homem chama de borboleta” (Sabedoria Oriental)

Este ano sentimos tardiamente a chegada do Natal…

Nada mudou no calendário, mas o clima de encerramento do ano, as sensações de comemoração e confraternização com as pessoas queridas, parecem ter demorado mais, quase ameaçando que não chegariam…

Da mesma forma, as avaliações e reflexões de encerramento do ano tiveram uma gestação atrasada. E quando pensamos no que gostaríamos de dizer para nossa comunidade, havia um sentimento vago, confuso e talvez, um pouco sombrio – como se o Espírito do Natal e os Votos de Felicidades para o Ano Novo não carregassem os bons sentimentos dos quais tratam essas palavras.

Recebemos incontáveis mensagens de felicitações, votos, esperanças, manifestações de carinho e reconhecimento, porém tais sentimentos ainda não nos tinham alcançado profundamente. Nenhuma dessas mensagens foi suficientemente emocionante para querermos compartilhá-la com todos.

Imaginamos então que as razões disso poderiam ser a vida corrida e agitada que levamos, o estresse, a quantidade de compromissos, a falta de tempo para estar com a família e com os amigos… Ainda notamos que essas condições não envolviam apenas a nós, mas também muitas das pessoas próximas!

Então, este ano, decidimos mudar nossa mensagem e, em vez de falarmos sobre renovação, preferimos tratar do encerramento. Jorge Luís Borges, um brilhante autor argentino, dizia em um de seus livros algo como imaginar a vida como uma longa sucessão de mortes e renascimentos… Complementava sua reflexão insistindo na ordem em que apresentava suas palavras: primeiro a morte, depois o recomeço – pois não haveria a eternidade caso a vida não pré-existisse, isto é, a vida era eterna, entrecortada pelas múltiplas mortes.

O evento final desta reflexão veio então durante a leitura de um trecho de um livro de Peter Senge, que transcrevo a seguir:

“Há alguns anos, em um de nossos seminários sobre liderança, um jamaicano do Banco Mundial chamado Fred contou-me uma história bastante comovente. Poucos anos atrás, soubera que padecia de uma doença terminal. Depois de consultar inúmeros médicos, que confirmaram o diagnóstico, fez o que todos fazem em semelhante situação: semana após semana, negou o fato. Mas aos poucos, com a ajuda de amigos, foi aceitando a realidade de que só viveria uns poucos meses. ‘Então, algo de impressionante aconteceu’, disse ele. ‘Simplesmente parei de fazer o que não era essencial, o que não importava. Passei a ocupar-me de projetos com crianças, que sempre desejei realizar. Não discuti mais com minha mãe. Quando alguém me cortava no trânsito ou acontecia algo que antes me deixaria furioso, eu ficava calmo. Em suma, não tinha tempo a perder com bagatelas.’

“Aí, pelo fim desse período, Fred iniciou um novo e maravilhoso relacionamento com uma mulher que o aconselhou a buscar outras opiniões sobre sua doença. Ele consultou alguns médicos nos Estados Unidos e logo recebeu um telefonema de um deles dizendo: ‘Chegamos a um diagnóstico diferente’. O médico lhe disse que ele tinha uma forma rara de uma doença perfeitamente curável. Agora vem a parte da história que nunca esquecerei. Fred confessou: ‘Quando ouvi isso ao telefone, chorei como um bebê… pois temia que minha vida voltasse a ser o que fora!’

“Foi preciso o cenário da possibilidade iminente de sua morte para que Fred despertasse. Foi preciso um choque desses para transformar sua vida. Talvez algo semelhante deva acontecer com todos nós que vivemos na Terra. Um cenário de réquiem talvez tivesse isso a nos oferecer.”

Houve um instante de silêncio.

“Como vocês sabem”, disse Joseph mansamente, “quando tudo já se disse e se fez, a única mudança que pode fazer alguma diferença é a transformação do coração humano.” (trecho retirado do livro “Presença – Propósito Humano e o Campo do Futuro” de Peter Senge e outros – 2007 – Ed. Cultrix, pg.37).

Ao ler esse fragmento acima, lembrei-me de uma reportagem contundente que lera muitos anos antes, sobre um garoto aidético em seu leito de morte que agradecia a Deus pela doença que contraíra! Explicava que fora um jovem de classe média alta muito rebelde, ousado e atrevido, que torrava dinheiro e não respeitava os pais… Brigava na escola e, apesar de todo amor e carinho da família, vivia inquieto agredindo as pessoas. Então, quando fora diagnosticado soropositivo, tudo desmoronou… Ao passar pelos diferentes estágios psicológicos e emocionais de sua morte, pela primeira vez pôde reconhecer o paraíso que desprezara, o amor e cuidado dos pais, dos irmãos, de toda família… E que, mesmo esses poucos meses de convivência harmoniosa valiam mais do que todas as sombras que enfrentara para retornar ao seu Lar.

De fato, imaginamos que não seja possível falar de renovação, recomeço e vida sem reconhecermos a importância do encerramento, do fim, da morte. Quando pensamos sobre a transformação, a mudança ou mesmo o crescimento e o desenvolvimento, pessoal ou social, talvez estejamos esquecendo essa dimensão essencial de deixar para trás aquilo que já passou! Sim, o esquecimento dos ressentimentos, o encerramento dos desafetos e do desamor, o fim da CPMF, a diminuição da fome no mundo, a morte de preconceitos e mentiras, a dissolução das frustrações de tantas pessoas que não encontraram a sorte no ano que passou…

Talvez por isso, por tentarmos ser otimistas e escondermos a luz do sol com uma peneira ao buscar ignorar essa dimensão sombria do mundo, logo em janeiro ou fevereiro, grande parte das pessoas já voltou à rotina e esqueceu-se dos sentimentos, promessas e sonhos nascidos no início do ano. Pois talvez não seja possível a Renovação antes de lidarmos com o Encerramento das pendências!

Enfim, desejamos acreditar que ainda seja possível contribuirmos para a construção de um mundo melhor, com melhores sentimentos, relacionamentos, realizações e sonhos.

E foi pensando nisso que incluímos em nossa mensagem a história abaixo, de modo que os sentimentos despertados anteriormente possam encontrar seu lugar ao lado dos bons sentimentos que essa época nos convida a expressar.

Boas Festas!

Com carinho,

Walther, Viviani, Raquel e Equipe do IDPH

As longas colheres

Uma vez, num reino não muito distante daqui, havia um rei que era famoso tanto por sua majestade como por sua fantasia meio excêntrica.

Um dia ele mandou anunciar por toda parte que daria a maior e mais bela festa de seu reino. Toda a corte e todos os amigos do rei foram convidados.

Os convidados, vestidos nos mais ricos trajes, chegaram ao palácio, que resplandecia com todas as suas luzes.

As apresentações transcorreram segundo o protocolo, e os espetáculos começaram: dançarinos de todos os países se sucediam a estranhos jogos e aos divertimentos mais refinados.

Tudo, até o mínimo detalhe, era só esplendor. E todos os convidados admiravam fascinados e proclamavam a magnificência do rei.

Entretanto, apesar da primorosa organização da festa, os convidados começaram a perceber que a arte da mesa não estava representada em parte alguma.

Não se podia encontrar nada para acalmar a fome que todos sentiam mais duramente à medida que as horas passavam.

Essa falta logo se tornou incontrolável.

Jamais naquele palácio nem em todo o país aquilo havia acontecido.

A festa não parava de esforçar-se para atingir o auge, oferecendo ao público uma profusão de músicos maravilhosos e excelentes dançarinos.

Pouco a pouco o mal-estar dos espectadores se transformou numa surda mas visível contrariedade.

Ninguém no entanto ousava elevar a voz diante de um rei tão notável.

Os cantos continuaram por horas e horas. Depois foram distribuídos presentes, mas nenhum deles era comestível.

Finalmente, quando a situação se tornou insustentável, e a fome intolerável, o rei convidou seus hóspedes a passarem para uma sala especial, onde uma refeição os aguardava.

Ninguém se fez esperar. Todos, como um conjunto harmonioso, correram em direção ao delicioso aroma de uma sopa que estava num enorme caldeirão no centro da mesa.

Os convidados quiseram servir-se, mas grande foi sua surpresa ao descobrirem, no caldeirão, enormes colheres de metal, com mais de um metro de comprimento. E nenhum prato, nenhuma tigela, nenhuma colher de formato mais acessível.

Houve tentativas, mas só provocaram gritos de dor e decepção. Os cabos desmesurados não permitiam que o braço levasse à boca a beberagem suculenta, porque não se podiam segurar as escaldantes colheres a não ser por uma pequena haste de madeira em suas extremidades.

Desesperados, todos tentavam comer, sem resultado. Até que um dos convidados, mais esperto ou mais esfaimado, encontrou a solução: sempre segurando a colher pela haste situada em sua extremidade, levou-a à… boca de seu vizinho, que pôde comer à vontade.

Todos o imitaram e se saciaram, compreendendo enfim que a única forma de alimentar-se, naquele palácio magnífico, era um servindo ao outro.

Que assim seja!

Retirado do livro “Histórias da Tradição Sufi”

Edições Dervish – 1993 – Instituto Tarika

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